segunda-feira, 9 de setembro de 2013

REINAÇÕES DE NARIZINHO - MONTEIRO LOBATO

SITUAÇÃO DE APRENDIZAGEM - LEITURA DE TEXTO LITERÁRIO

REINAÇÕES DE NARIZINHO - Monteiro Lobato

Compartilhar a leitura de uma obra, trocar impressões sobre seu enredo, construir significados comuns e defender pontos de vista divergentes são algumas das práticas que contribuem para a formação de uma comunidade de leitores. É também consenso entre os educadores que é tarefa fundamental da escola criar situações de contato frequente e sistemático com textos literários de qualidade, em especial as obras clássicas que constituem o acervo cultural da humanidade. Elas possibilitam, entre outras coisas, a formação do gosto, criam repertório, oferecem modelos estéticos e favorecem a construção de diferentes sentidos para a leitura. Por meio delas, as crianças podem construir, pouco a pouco, intimidade com a linguagem, apreciando não apenas o que o texto diz, mas também a forma como o faz, aproximando-se da palavra, criando suas próprias interpretações e dialogando com tempos e espaços próprios do universo literário.
E nada melhor do que construir essa intimidade com os livros e com a leitura com base na obra de um dos maiores autores da literatura infantil brasileira: Monteiro Lobato.
1ª etapa: Leitura em voz alta feita pelo professor para os alunos
A primeira etapa da sequência consiste na leitura em voz alta, pelo professor, do primeiro volume da obra. O livro é organizado em 7 capítulos, os quais poderão ser lidos semanalmente, dependendo do tempo disponível para esse trabalho na rotina escolar.
Apresentação da proposta de leitura para os alunos
É fundamental que você apresente aos alunos os objetivos dessa leitura, justificando a escolha dessa obra e compartilhando seus motivos, estratégias e interesses relacionados ao autor e a outros livros de Monteiro Lobato, se os conhecer. No início do trabalho, informe como será organizada a proposta, a frequência com a qual os capítulos serão lidos e a previsão de término dessa primeira etapa do trabalho. Também esclareça para o grupo que, em um outro momento, os alunos farão sozinhos a leitura de alguns dos capítulos do segundo volume e conversarão sobre suas impressões com colegas que escolherem a mesma aventura, elaborando uma indicação que convide os demais para a leitura.
Comece apresentando a obra aos alunos e conversando com o grupo sobre os conhecimentos prévios que possuem acerca do autor e dos personagens que fazem parte do Sítio do Picapau Amarelo. É provável que as crianças possuam algumas referências e, portanto, devem ser incentivadas a apresentar as informações que possuem, indicando, se possível, de que forma as mesmas foram descobertas. Nas edições mais recentes de Reinações de Narizinho há um pequeno texto que informa brevemente sobre a vida do Monteiro Lobato e outro no qual o universo do Sítio é apresentado aos leitores. Se desejar, faça a leitura desses textos para a classe.
Preparação da leitura pelo professor
É fundamental que a leitura de cada um dos capítulos seja preparada anteriormente. Nos momentos em que lê para os alunos, você atua como modelo de leitor e, sendo mais experiente, compartilha suas práticas com o grupo, emprestando sua voz para a construção de sentidos do texto. Por isso, é imprescindível que você ensaie sua leitura, observando a entonação a ser empregada, o ritmo e as pausas que deseja fazer.
Antes da leitura, durante a leitura e depois da leitura
A cada capítulo, planeje também as intervenções que serão feitas, pensando em boas perguntas que possam alimentar a conversa apreciativa que as crianças farão após a leitura de cada capítulo, favorecendo a realização de inferências. É fundamental que as questões propostas não sigam os modelos dos chamados "questionários de interpretação de textos".
Comece essa conversa, como qualquer leitor real faria, comentando e justificando o trecho do qual mais gostou (porque lhe pareceu bem escrito ou interessante, por exemplo), uma expressão que julgou bem humorada, algum acontecimento que lhe pareceu inusitado etc. O objetivo é dar início a um diálogo sobre um texto compartilhado pelo grupo, para que os alunos possam começar a se ver, pouco a pouco, como leitores que comunicam suas impressões sobre as leituras que realizam.
No caso dessa obra, em cada uma das aventuras o autor apresenta um dos personagens do sítio que passa a integrar as reinações vividas por Narizinho. Por isso, é interessante que você ofereça espaço nos momentos iniciais de leitura para que os alunos retomem os episódios anteriores. Quais foram os personagens que surgiram? Como são? De que forma apareceram no texto? Ajude-os a estabelecer relações entre os episódios da narrativa e as relações de causa e efeito entre as ações dos personagens nas aventuras por eles vividas em cada um dos capítulos.
Ao final de cada leitura, compartilhe também seu comportamento leitor apresentando e levantando as antecipações sobre as leituras seguintes. Dessa forma, voocê estará gerando expectativas sobre os próximos acontecimentos, podendo questionar o grupo sobre as "pistas" oferecidas pelo autor para sugerir o que o leitor pode encontrar nas páginas que virão.
No caso dos momentos de conversa coletiva dessa obra, especificamente, além de poder evidenciar o conteúdo do texto, incentive os alunos a analisar a linguagem empregada pelo autor. A presença do humor, da ironia, o uso de expressões típicas da linguagem popular e o emprego de termos característicos da época em que a obra foi escrita são exemplos de recursos que podem ser ressaltados durante e após a leitura de cada capítulo.
Ao abrir espaço para que as crianças comuniquem suas opiniões, é preciso estar atento para o fato de que são muitas as leituras possíveis e que os alunos podem apresentar divergências em suas interpretações sobre o texto. Por isso, crie um ambiente propício para que as crianças possam manifestar-se e, principalmente, justificar suas impressões sempre apoiadas no texto ou em seus conhecimentos prévios, apresentando-as claramente para o grupo de forma que todos possam compreender os sentidos construídos a partir da leitura compartilhada.
2ª etapa: Trabalhando com os círculos de leitura
Segundo COLOMER (2007), "o gosto e o juízo de valor são inseparáveis da experiência da leitura logo que esta se inicia na infância e ocorrem sempre em relação a algum parâmetro comparativo. São aspectos que se formam através da prática." Para a especialista espanhola, "não se aprende apenas lendo ‘muito bem’ uns poucos textos, também é necessário ajudar as crianças a estabelecer relações entre muitas leituras."
Por isso, é fundamental criar situações nas quais elas tenham acesso à diversidade de textos e opiniões para que construam seu repertório e possam criar mecanismos de comparação entre diferentes leituras, compartilhando experiências leitoras significativas. Uma das formas de atender a esses objetivos é a proposta de trabalho com os círculos de leitura.
Informe que após a leitura compartilhada do primeiro volume de Reinações de Narizinho os alunos lerão as aventuras do segundo volume da obra em cinco pequenos grupos, conversarão sobre suas impressões acerca do capítulo e farão indicações sobre os textos lidos convidando os demais leitores a conhecê-los. Para isso, é necessário que todos os alunos tenham o livro e possam fazer a leitura do capítulo escolhido com antecedência.
Planeje previamente a formação dos grupos, optando por reunir as crianças de acordo com competências leitoras próximas. Cada grupo deverá ler uma aventura e cada aluno lerá apenas um dos capítulos do volume por vez.
Antes de iniciar o trabalho, compartilhe com o grupo a responsabilidade pela leitura das aventuras que compõem o segundo volume da obra, combinando qual o prazo necessário para realização da mesma. Se achar necessário, os alunos poderão dividir cada capítulo em duas partes, fazendo a leitura e discussão de um primeiro trecho em um momento e finalizando-a em outro.
Decida coletivamente se a leitura será realizada na escola ou em casa, conforme a disponibilidade da maioria e a rotina da sala de aula. Com os maiores pode-se, por exemplo, decidir que toda a leitura será feita em casa e marcar uma data para compartilhar em grupos. O importante é deixar claro o compromisso que todos deverão assumir em fazer a leitura do texto para, no momento oportuno, discutir com os colegas, trocar suas impressões e fazer indicações aos demais.
Para despertar o interesse e oferecer elementos que orientem a escolha das crianças, faça uma breve apresentação do enredo de cada uma das aventuras (Cara de coruja, O irmão de Pinóquio, O circo de cavalinhos, Pena de papagaio e O pó de pirlimpimpim). Convide os alunos a decidirem qual capítulo vão ler durante o período combinado.
Em seguida, explicite o que os alunos deverão observar ao longo do texto, pedindo que anotem sentimentos que a leitura despertou, relações que estabeleceram com outras histórias já conhecidas, características dos personagens, palavras que provocaram dúvidas e os significados que conseguiram atribuir com base no contexto, perguntas que vieram à mente, como imaginaram uma determinada cena etc. Oriente-os a registrar os trechos que acharam engraçados, os "truques" do autor para chamar a atenção do leitor, palavras e expressões interessantes etc.
No dia combinado, o grupo se reúne para trocar impressões sobre o capítulo ou trecho lido. Retome as orientações que foram dadas antes da leitura. Ajude os alunos a guiar a conversa apreciativa com base nas anotações que fizeram durante a leitura. Circule entre os grupos, verificando como estão se saindo nessa tarefa e ofereça ajuda, quando necessário. Também anote os comentários que lhe parecerem interessantes para compartilhá-los no momento da discussão geral.
No trabalho com os alunos maiores, aprofunde as questões relacionadas à intertextualidade oferecendo versões de alguns dos contos citados pelo autor para que os grupos possam estabelecer relações entre o texto original e as referências feita a eles por Lobato nos capítulos dessa obra. Os alunos poderão conversar sobre o modo como os personagens do conto aparecem no Sítio, as "brincadeiras" do autor para fazer referências às características de cada um deles, discutindo se o conhecimento das obras citadas favorece ou não a interpretação do capítulo lido.
Em seguida, amplie a discussão, solicitando que cada grupo conte algo interessante que foi compartilhado durante a conversa, propondo que reflitam também sobre o processo de conversar sobre a leitura, levantando os procedimentos que ajudaram a discussão e as dificuldades encontradas na realização da tarefa.
Esse momento de troca entre os grupos pode durar uma ou duas aulas, de acordo com a produtividade da discussão observada pelo professor. Depois dessa conversa, peça para que os alunos escrevam um pequeno texto, recomendando o capítulo lido para os demais colegas. É importante discutir sobre a realização dessa tarefa: os grupos não devem, por exemplo, revelar ou resumir toda a história, porque assim, poucos se interessariam em lê-la. Esclareça que é preciso garantir um certo mistério, algo no texto de recomendação que destaque o melhor da história, que envolva e convide à leitura, sem revelar muitos detalhes sobre o desenrolar do conto. A descrição de um personagem ou de um sentimento despertado pela leitura são exemplos de estratégias eficientes para "fisgar"o interesse do leitor.
É importante apresentar aos alunos alguns modelos de indicações literárias que podem ser encontradas em catálogos de editoras, em sites que promovem a leitura ou nas quartas capas dos livros, cuidando para selecionar apenas indicações de obras que sejam conhecidas por grande parte dos alunos. Faça a leitura desse material e discuta cada uma delas, destacando os trechos que despertam o desejo de ler.
Após esse contato, peça para que os alunos escrevam a indicação do capítulo que acabaram de ler e discutir. Oriente-os para que coloquem os dados bibliográficos do texto (nome da obra, capítulo, autor e editora).
Terminada a etapa de produção das indicações literárias, organize a sala em uma roda e peça a cada um dos grupos que leia a indicação que escreveu. Caso perceba que a orientação de não constar a história toda não foi cumprida, intervnha, retomando o que havia sido combinado anteriormente.
Depois que todos os grupos apresentarem suas indicações, os alunos escolhem, pautados nas recomendações, qual o capítulo que desejam ler em seguida. Se quiserem, os alunos de um mesmo grupo podem escolher capítulos diferentes e formar novas parcerias com outros colegas. Combine um novo prazo para a realização de uma nova rodada do círculo de leitura.
A proposta é que o trabalho tenha, no mínimo, duas rodadas para que cada criança tenha a oportunidade de explorar a leitura de mais de um capítulo e participar de encontros em que possa conversar em torno do literário, aprendendo a levar em conta o seu ponto de vista e dos demais colegas, refletindo sobre as questões trazidas pelo grupo e suas próprias ideias acerca do que foi lido até o momento.
Se possível, providencie cópias das indicações para que os alunos possam colá-las nos cadernos, organizando uma coletânea. Esse material também pode ser disposto em fichas e guardado em uma caixinha de indicações, às quais podem ser somadas outras recomendações escritas pelos alunos ao longo do trabalho com a leitura de outras obras realizada durante o ano.
Avaliação
Acompanhe as aprendizagens desenvolvidas pelas crianças nessa sequência observando se o aluno:
- mantém-se atento enquanto ouve a leitura realizada pelo professor e concentrado quando realiza suas leituras silenciosamente;
- acompanha a leitura em voz alta, retomando trechos lidos anteriormente, fazendo antecipações coerentes;
- relê (ou pede que o professor releia trechos), esforçando-se para compreender o que não compreendeu inicialmente;
- solicita ajuda do professor ou dos colegas para compreender melhor suas leituras;
- faz uso do contexto para compreender palavras ou expressões desconhecidas;
- participa das conversas apreciativas, citando passagens do texto e complementando as ideias apresentadas pelo grupo;
- identifica pistas para interpretação e avaliação dos textos literários que extrapolam os critérios de gosto pessoal;
- estabelece relações entre suas leituras e outros textos conhecidos e experiências vividas;
- elabora uma indicação literária coerente com a proposta;
- ao fazer a indicação, utiliza passagens interessantes do texto para ampliar o interesse do futuro leitor.
 Revista Nova Escola

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A leitura e o jovem

O MEDO DA INTERIORIDADE

Esse medo ocorre principalmente com os rapazes, que são reféns de grupos que lhes oferecem um sentimento de inclusão, em que se "garantem" e se controlam uns aos outros. Pois além dos pais temerosos de que os livros levem seus filhos longe demais, além dos professores que nem sempre conseguem transmitir que ler não significa necessariamente submeter-se a um sentido imposto, além disso tudo existem os amigos. E os comportamentos de fracasso ou de rejeição à escola, ao conhecimento, à leitura, constituem uma armadura que eles confundem com virilidade, e são reforçados pelo desejo de não serem rechaçados pelo grupo. Um assistente social contou-me que no bairro em que trabalhava, quando um rapaz se sentia tentado a se aproximar dos livros, os membros de seu grupo lhe diziam: "Não vá. Você vai perder a sua força".
Freqüentemente, nos meios populares, o "intelectual" é considerado suspeito; é colocado de lado como um pária, considerado um "puxa-saco", maricas, traidor de sua classe, de suas origens etc. Muitos sociólogos e escritores têm relatado isso em diferentes países. Inclino-me a pensar que se trata de algo amplamente compartilhado, para além das fronteiras, mesmo que, naturalmente, as variações culturais sejam importantes. Darei alguns exemplos, pois é preciso conhecer muito bem essa forma
de resistência para, eventualmente, poder ajudar os jovens a contorná-la.
Acompanhemos o escritor Andrei Makine: a história se passa na Rússia; o narrador é um adolescente interno em um pensionato e que gosta muito de ler:
"A sociedade em miniatura de meus colegas me reservava, seja uma condescendência absorta (eu era um 'imaturo', não fumava e não contava histórias obscenas em que os órgãos genitais masculinos e femininos eram os principais personagens), seja uma agressividade cuja violência coletiva me deixava perplexo: eu me sentia muito pouco diferente dos outros, não acreditava que eu merecesse tanta hostilidade. É verdade que eu não me extasiava diante dos filmes que sua minissociedade comentava durante os recreios, não diferenciava um time de futebol do outro, dos quais eram torcedores fanáticos. Minha ignorância os ofendia, viam nela um desafio. Atacavam-me com suas ironias, com seus punhos".1
Acompanhemos agora o escritor Paul Smail, que descreve o pátio de recreio de uma grande escola de Paris. O narrador é de origem kabila:
"Comecei a lutar boxe aos treze anos. Estava na 8a série do Jacques-Decour [trata-se da escola] e, a cada recreio, me cobriam de socos. E na saída me tiravam tudo: meu gorro, minha jaqueta, minha mochila... Por quê? Porque eu era
1 Le Testament français, Paris, Mercure de France, 1995, p. 139.
o mais jovem, justamente, e tinha as melhores notas. Porque as meninas gostavam de mim. Porque eu lia o tempo todo. Porque não me sentia desonrado em responder quando o professor interrogava a classe. Porque um dia, o professor de francês leu minha redação para toda a classe, usando-a como modelo. Porque, como meu pai, eu achava importante falar corretamente [...]. Quando vejo no jornal da TV uma notícia sobre o genocídio que os Hutus cometeram contra os Tutsis, eu revejo o pátio da escola Jacques-Decour".2
Vejam agora os adjetivos atribuídos pelos alunos de escolas técnicas ou profissionalizantes na França, ao aluno que gosta de ler: é um "palhaço", um "pretensioso" de óculos, "filhinho (ou filhinha) de papai", um desajeitado, sem personalidade, alguém que acredita ser melhor que os outros, um doente, um tapado, um solitário, um chato etc. Como disse François de Singly, o sociólogo que comenta essa pesquisa: "Basta escutar a descrição de um aluno que gosta muito de ler feita por seus colegas de um curso de contabilidade, para entender que, se existe um jovem como este, vive escondido".3
De fato ele se esconde. O sociólogo Erving Goffman, em seu livro Stigmate, nos dá mais um exemplo, desta vez na Inglaterra, de um "bandido" que se esconde de seus conhecidos para ir à biblioteca: "Eu ia a uma biblioteca
2 Vivre me tue, Paris, Balland, 1997, pp. 26-7.
3 Les Jeunes et la lecture, Ministère de l'Éducation Nationale et de la Culture, Dossier Éducations et Formations, 24, jan. 1993, p. 124.
pública perto de onde morava e olhava para trás duas ou três vezes antes de entrar, só para estar seguro de que não havia ninguém que me conhecia nas redondezas e que poderia me ver naquele momento".4
Nos meios populares, mas não só neles, existe a idéia de que ler efeminiza o leitor. Num livro intitulado Psiu, que trata do amor pela leitura, escrito por Jean-Marie Gourio, o pai do narrador, que até então nunca havia tocado um livro, um dia compra um pequeno tratado médico. E ei-lo caminhando pelas ruas, não sabendo como carregar esse objeto insólito:
"esse pequeno livro de poucos gramas lhe pesava na extremidade do pulso e lhe deixava a nuca tensa, sendo que ainda mancava um pouco em conseqüência de seu ferimento; com seu livro, papai dava a impressão de ser um verdadeiro inválido! E logo — faltavam apenas trinta metros a percorrer — sentiu-se aliviado de poder colocar sua aquisição sobre o balcão. Parecia até que tinham lhe pedido que caminhasse de vestido e salto alto!".5
O narrador, por sua vez, que se apaixonou por uma bibliotecária e se deixa levar pelos devaneios, pelas metáforas, observa: "Antes, nunca tinham me ocorrido semelhantes excentricidades; eu mesmo teria me chamado de maricás".
4 Stigmate: les usages sociaux des handicaps, Paris, Minuit, 1975, p. 13 [ed. original: Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity, 1963].
5 Chut, Paris, Julliard, 1998, p. 54.
Essa associação entre o fato de se aproximar dos livros e o risco de perder a virilidade pode ocorrer diante de tudo o que é escrito e que apresenta o risco de influenciar o leitor, ainda que de forma momentânea: esses rapazes confundem deixar sua carapaça de lado por uns minutos e se precipitar num abismo de fraqueza. Mas isso fica particularmente claro no caso de leituras que têm muito a ver com a interioridade. Para os rapazes, não é fácil aceitar que haja neles um espaço vazio em que se pode acolher a voz de um outro; e esse tipo de leitura pode ser percebido, inconscientemente, como algo que os expõe ao risco de castração. A passividade e a imobilidade que a leitura parece exigir podem também ser vividas como algo angustiante. De fato, abandonar-se a um texto, deixar-se levar, deixar-se tomar pelas palavras, pressupõe talvez, para um rapaz, ter que aceitar, que assimilar seu lado feminino. Se isso é algo relativamente fácil nas classes médias ou em um meio burguês — onde existem outros modelos de virilidade, onde a cultura letrada é reconhecida como um valor —, é particularmente difícil em um meio popular, onde os rapazes se mantêm sob estreito controle mútuo.
Os conflitos socioculturais podem reforçar ou mascarar os medos mais inconscientes: esses rapazes talvez não suportem a dúvida, a sensação de carência que acompanha todo aprendizado, e se sintam perseguidos por palavras que os remetem a interrogações arcaicas, à morte, ao sexo, aos mistérios da vida, à perda.
Não esqueçamos a antiga associação entre o livro, o conhecimento e os mistérios do sexo. Encontramos, aliás, sinal disso no fato de que muitas vezes obtemos os primeiros conhecimentos sobre o sexo no dicionário. Se a curiosidade foi por muito tempo considerada um defeito, isso não deixa de ter relação com o fato de que, segundo a psicanálise, a pulsão de conhecimento se origina na curiosidade sexual da infância. De maneira mais precisa, a curiosidade consiste, num primeiro momento, em saber do que é feito o interior do corpo e, por excelência, o interior do corpo materno. Melanie Klein e James Strachey, por exemplo, mostraram que havia uma equivalência para o inconsciente entre os livros e o corpo materno. Melanie Klein escreveu: "Ler significa, para o inconsciente, tomar o conhecimento do interior do corpo da mãe [...] o medo de despojá-la é um fator importante nas inibições em relação à leitura".
Alberto Manguei também reconhece isso em sua História da leitura, quando diz:
"O medo popular do que um leitor possa fazer entre as páginas de um livro é semelhante ao medo intemporal que os homens têm do que as mulheres possam fazer em lugares secretos de seus corpos, e do que as bruxas e os alquimistas possam fazer em segredo, atrás de suas portas trancadas".
Se estou indo um pouco longe, é justamente para que sintam que a leitura não é uma atividade anódina à qual,
freqüentemente, alguns gostariam de reduzi-la. E para dizer também que é possível ajudar os jovens a superarem esses medos: por exemplo, na França, o psicoterapeuta Serge Boimare reconcilia os rapazes com a leitura apresentando-lhes mitos, contos, poesias, metáforas, que enriquecem seu imaginário, graças aos quais eles podem filtrar esses sentimentos inquietantes que a leitura e as situações de aprendizagem despertam neles e que paralisam seu pensamento. Ao ler para eles a cosmogonia de Hesíodo, os contos de Grimm ou os romances de Júlio Verne, Boimare lhes permite simbolizar fantasmas muito arcaicos. Assim, sua necessidade de controle e de domínio, sua rigidez, dão pouco a pouco espaço para movimentos psíquicos.
Alguns rapazes fazem, espontaneamente, uma escolha diferente da virilidade gregária: uma escolha pela busca de si mesmos. Fiquei particularmente surpresa com o número de rapazes que me disseram gostar de ler ou escrever poesia. Mas é claro que não comentam com seus amigos, para evitar a repressão que sofre todo aquele que é "estudioso". É o caso de Nicolas, que diz:
"Se pensamos: 'esse aí vai gozar de mim...', isso mostra como a vergonha tem um peso muito grande sobre a leitura e a escrita. São coisas reservadas para uma elite. Tenho um amigo que adora freqüentar galerias de arte e com ele acontece a mesma coisa: se vai ao clube de esportes, vai guardar isso pra si, não vai falar disso com
ninguém... Abrir-se com os outros é cruel demais... A quantidade de gente que lê e que nunca fala disso é enorme".
Na realidade, nos meios populares, não é qualquer rapaz que vai seguir o caminho da leitura. Com freqüência é aquele que, por alguma razão, se diferencia do grupo. Ouçamos novamente Nicolas:
"Não acho que eu seja do tipo que fica vagando pelas ruas. Nunca me integrei ao grupo, porque não tinha a noção de grupo [...]. Foi por isso que fui obrigado a sair da escola. Dois deles me causaram problemas. Fui mais forte que eles, porém todo o grupo caiu em cima de mim, e eles eram cinqüenta pessoas. Não tive escolha: deixei a escola, deixei os amigos, eu sentia muito medo".
Vamos ouvir agora Jacques-Alain, que é um leitor assíduo: "Sempre fui um menino solitário e diferente, voltado para dentro [...]. Meus amigos eram os livros". Ou Roger, num outro contexto, o do campo. Roger é um agricultor autodidata:
"De onde me vem esse amor pelos livros? Sabe, aos vinte anos, eu caminhava pela vila, tentava passar desapercebido, não dizia bom-dia a ninguém. Eira muito tímido. Voltado para dentro. Nunca joguei futebol, detesto o bar. Gostava de andar de bicicleta, por quê? Como explicar... Não sei. De qualquer maneira, sempre gostei de ler".
Para terminar, ouçamos Richard Hoggart, um intelectual originário das classes populares inglesas, que escreveu sua autobiografia:
"Precisava descobrir algo por mim mesmo, desviar-me do caminho traçado, realizar minhas próprias descobertas, encontrar minhas próprias inspirações, fora daquilo que os professores propunham e muito além do que diziam a maior parte de meus colegas. Esse caminho passava pela biblioteca municipal...".
A individualização e a leitura caminham juntas, mas talvez a leitura pressuponha, ao menos para os rapazes, uma saída prévia do grupo, ou uma dificuldade em fazer parte dele ou, ainda, um desejo de diferenciar-se dele. E essa diferença é, em seguida, encorajada, elaborada, de maneira decisiva, pela leitura.
Vamos observar que isso pode ocorrer também, em menor proporção, para as meninas. Como ocorreu com Lea, uma jovem de dezessete anos, oriunda do Zaire, que vive na periferia parisiense: "Eles, eles andam em grupo. Eu, ao contrário, quando venho à biblioteca, venho sozinha. Prefiro fazer minhas coisas sozinha, não tenho espírito de coletividade".
Mesmo entre aqueles que freqüentam bibliotecas, há alguns que só vão em grupo para fazer suas tarefas, e que nunca tomarão gosto pela leitura ou descobrirão algo por si mesmos. Enquanto há outros que algum dia irão se
aventurar sozinhos entre as estantes. Por que, então, alguns permanecem sempre colados aos outros sem que jamais lhes ocorra abrir um livro, enquanto outros traçam um caminho singular em direção à leitura? Por um lado, é uma questão de temperamento pessoal; por outro, existe o pressuposto de que o jovem usuário de uma biblioteca tenha uma autonomia que, na realidade, espera-se que tanto a leitura como a biblioteca ajudem a construir. Porém, elas podem apenas encorajar, contribuir para isso. Se a leitura e a biblioteca ajudam muito quem tem vontade de mudar, de se tornar diferente, de "desviar do caminho traçado", isso é muito mais incerto para quem está pouco seguro desse desejo.
Dizendo de outra forma, a leitura pode reforçar a autonomia, mas o fato de alguém se entregar a ela já pressupõe uma certa autonomia. A leitura ajuda a pessoa a se construir, mas pressupõe, talvez, que ela já tenha se construído o suficiente e que suporte ficar a sós, confrontada consigo mesma. Em termos psicanalíticos, a leitura ajuda a elaborar a "transi-cionalidade", para usar a expressão de Winnicott, porém pressupõe que se tenha tido acesso a essa transicionalidade, que se tenha saído do estado da "fusão".
Para ler livros e, mais ainda, para ler literatura — que é algo que perturba, que põe em questão a segurança, as relações de pertencimento —, é necessária uma estruturação mínima do sujeito? Que margem de manobra dispomos para atrair as pessoas para a leitura, jovens ou menos jovens, que necessitam de uma identidade feita de
concreto armado (pela falta de uma verdadeira segurança em relação à identidade)? Não sei, seria preciso refletir mais sobre isso com psicanalistas e psicólogos.
Se não se pode trabalhar nesse sentido, então teremos, na maior parte do tempo, dois caminhos: alguns vão escolher o espírito de grupo viril, e terão medo do encontro consigo mesmo que a leitura implica, medo da alteração que ela acarreta e da carência que ela pode significar; e outros vão escolher um caminho singular. Evidentemente, um homem que não tem medo de sua própria sensibilidade me parece muito mais maduro, mais humano, que aqueles que se deslocam em hordas, alardeando ruidosamente a força de seus músculos. Não escondo minha preocupação ao observar que na França, segundo pesquisas recentes, a divisão entre rapazes e moças tem se acentuado no que toca à leitura: três quartos dos leitores de romances hoje em dia são leitoras. Então, o que fazer para que os rapazes tenham menos medo da interioridade, da sensibilidade?
Como lhes transmitir, em particular, a experiência de outros homens que nela encontraram dimensões infinitamente desejáveis? Como o escritor Jean-Louis Baudry, que escreveu um belo texto sobre sua relação com a leitura — e com as mulheres —, do qual extraio algumas frases:
"A leitura me parecia uma atividade especificamente destinada às mulheres, como, por exemplo, a dança. Os homens só participavam dela na medida em que esta os conduzia mais diretamente às mulheres. Ler um livro era
se fazer de cavalheiro a serviço dos prazeres de sua dama, que eram, antes de tudo, prazeres de expressão. A leitura era tão feminina que feminilizava aqueles que, como meu pai, entregavam-se a ela. Feminilizava-os a ponto de torná-los capazes de refletir a luz dessas virtudes que as mulheres resplandeciam, virtudes associadas ao exercício e ao domínio da linguagem: inteligência, sutileza, fineza, imaginação, e o dom que elas pareciam possuir de enxergar além das aparências. Mas sobretudo, e talvez um pouco paradoxalmente, a leitura constituía um dos atributos da autonomia que eu lhes atribuía".
Uma vez mais, a leitura se vê associada às mulheres. Mas, para esse escritor, longe de torná-la desprezível, ao contrário, é o que constitui seu encanto, seu atrativo.
Eis aí, portanto, um certo número de "materiais" sobre o medo em relação ao livro. Eu os levei a passear por muitos lugares — dos campos franceses às margens da Arábia, dos fantasmas arcaicos às plantações escravagistas, e imagino que já devam estar mareados. Assim, sem ter a pretensão de dizer a última palavra sobre tudo isso, pois a questão é imensa e permanece aberta, o que podemos observar se nos esforçarmos em recapitular um pouco? Haverá algo em comum, claro que em graus muito diferentes, entre os fundamentalistas religiosos, os rapazes preocupados com a perda de sua virilidade, os pais que temem perder o controle sobre seus filhos etc. Etc.?
Talvez seja o temor de perder o domínio sobre algo. O medo de se ver confrontado com a carência, com a pluralidade de sentidos, com a contradição, a alteridade, de se perceber múltiplo. O medo de ver a identidade desmoronar, quando esta é vista como algo monolítico, imutável, total. Ou talvez seja, ao menos, a dificuldade de passar de um modo em que a identidade é vivida como uma entidade fixa, preservada por um alto grau de oclusão diante do outro, para um modo no qual a identidade é concebida mais como um processo, um movimento, e o outro é visto como uma possibilidade de enriquecimento.
Aquele que fica à distância dos livros teme perder alguma coisa, enquanto o que se aproxima deles sente que tem algo a ganhar. O primeiro teme se confrontar com uma carência, que tenta negar com todas as suas forças. O segundo acredita que, por meio dos livros, e em particular da literatura, poderá, ao contrário, apaziguar seus medos. E o que diz o escritor italiano Alessandro Baricco:
"A literatura deve ser um meio para que possamos enfrentar a tristeza da realidade, os nossos medos e o silêncio. Ela deve tentar pronunciar palavras, pois temos medo do desconhecido e do inominável. Acredito que todas as histórias — tanto as minhas como as de outros escritores — são apenas elaborações lingüísticas complexas que tentam dar um nome a nossas feridas, a nossos medos, tornando-os, deste modo, menos assustadores. É o imenso valor ético e civil das narrações
[...]. Se muitas pessoas lêem meus livros, é porque sentem, como eu, medo da realidade, ainda que não tenham consciência disso. [...] Se conhecemos o que nos assusta, podemos enfrentá-lo. Nomear é conhecer. Portanto, os escritores nos ajudam a dominar nossos medos. Pessoalmente, prefiro a dominação das narrações à dominação exercida pela ciência, a filosofia ou a religião. No filósofo, no erudito ou no padre, há sempre uma espécie de autoridade que não se encontra no escritor".6
Além do mais, quem evita os livros vê neles algo de desencorajador, de austero, distante da vida. Enquanto o leitor sabe que eles podem ser uma fonte de infinito prazer. E para dar um pouco mais de leveza, gostaria de dizer que aqueles que tiveram acesso aos livros evocam, antes de tudo, o prazer de ler. Darei a palavra a eles antes de continuar a percorrer os caminhos pelos quais nos tornamos leitores.
Alguns falam da leitura como um exercício vital ("se a pessoa não lê, morre; ler alimenta a vida"), ou como uma história de amor, de amor à primeira vista. Estes se deixam tocar, invadir pelo texto, se entregam a suas aventuras, se abandonam à alteração: "Kundera mudou minha maneira de ler", conta-nos uma jovem.
6 Magazine Littêraire, fev. 1998, p. 81.
"Eu o reli e dessa vez ele me transformou completamente. Deixei de me perguntar o que pensava, ou sobre o que estava ou não de acordo; ele me surpreendia, às vezes me chocava, e a partir disso se deu uma nova descoberta da leitura e dos livros. Já não se tratava de autores e de idéias que podiam me agradar, mas sim do fato de que podiam me trazer algo de diferente".
A leitura pode ser um caso de paixão que não espera, como ocorre com essa mulher, mãe de três filhos, que diz: "Se é realmente apaixonante, me envolvo e não importa que meus filhos gritem, tenham fome, não tem problema: preparo-lhes um ovo frito e volto correndo para minha leitura". E aqueles que amam ler encontram caminhos alternativos que lhes permitem entregar-se a essa paixão, como este agricultor:
"Você sabe, eu e minha mulher tivemos sete filhos; isso é algo que realmente mantém uma pessoa ocupada. Minha esposa ajudava na igreja, ensinava o catecismo. Sempre encontramos um jeito de dividir o trabalho, nós nos virávamos. Então, não me venha com essa história de 'não tenho tempo'. Isso não existe. Quando queremos nos organizar, nós conseguimos".
Para essas pessoas, o gosto pela leitura toma muitas vezes a forma de uma incorporação ávida, de uma questão oral. Vejamos algumas expressões que apareceram nas
entrevistas: "ler até ficar saciado", "devorei tudo", "saboreei", "é como uma guloseima", "é algo saboroso, saboroso", "queria saborear tudo", "têm aqueles que assaltam a geladeira, eu assalto a biblioteca" etc. Com muita freqüência, a intensa necessidade de leitura, a incapacidade de liberar-se dela, faz com que seja comparada a uma droga. Como diz essa mulher: "Os livros são como uma droga. Se não lemos, podemos morrer. Meu marido leu toneladas de livros, leu todas as bibliotecas da cidade, sempre leu e continua lendo o tempo todo. E uma doença. Lia até enquanto comia, não fazia outra coisa".